quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Tema: Amarelo

Jogo Amarelo

A faculdade era de um lado da cidade, a casa era do outro e mais um pouco. Até que dava pra pegar um ônibus só, era daqueles especiais que vão longe mas não tão longe assim, não era azul, nem vermelho. Com o trânsito e as paradas, levava duas horas pra chegar em casa. Tinha dia que a aula estendia da manhã até o fim da tarde, quando o cansaço já batia forte, lá eu seguia a caminho do meu rotineiro ônibus amarelo. Nas ilhas de calor do centro da cidade, o trânsito apertava, o ritmo lento e a efervescência do metal e do asfalto e do metal e do asfalto, acho que é disso que o centro da cidade é feito, metal e asfalto, e na hora que a coisa esquenta parece que vai virar tudo um só. E no meio desse um só, tinha eu, e um tanto de gente respirando o mesmo ar dentro daquela lata de sardinha gigante. Depois de um longo dia de aula, o sol das quatro catalisava todo este cenário em uma sensação desagradável por onde minha mente percorria, eu era tomado de uma espécie de sono, tédio e confusão mental. O sol forte brilhava no chão e nos carros, refletia direto em meus olhos, minha vista era tomada por um tom amarelado e até as gotas de suor do meu corpo resplandesciam. A cabeça não funcionava direito. Quando o tempo parecia que tinha parado, eu finalmente chegava no meu ponto, ainda atordoado seguia o caminho de casa para por fim terminar meu dia.

Certo dia, um daqueles dias bem cansados, provavelmente uma quinta feira, onde o corpo já pede pelo fim de semana, onde tampouco receberá descanso. Eu estava sentado no meu acento de sempre, dentro do ônibus amarelo, fazendo minha cara de poucos amigos, eu nem sei porque eu fazia aquela cara, no final das contas o ônibus ia acabar enchendo e alguém ia ter que sentar ali de qualquer forma, acho que era pra adiar a desgraça. Fim do dia, cansaço, trânsito, calor, e uma pessoa me espremendo naquele espaço mínimo? É, desgraça. Minha técnica já seguia infálivel por mais de três pontos, eu desfrutava com alegria o meu respirável espaço, acho que a situação provavelmente me fez amolecer, quando eu mal reparei aquela figura já estava sentada do meu lado. Logo não fui com sua cara. Sua roupa, seu cabelo, seus trejeitos, e o pior de tudo, aquele olhar de satisfação. Ele parecia estar desfrutando aquele momento, por acaso ele não sabia no que ele estava se metendo? O caminho que ele seguiria? Ele só poderia estar zombando de mim, fiquei enfurecido de ver alguém se divertindo daquele jeito ali, no meio de todas aqueles rostos cansados. Ele trazia aquele pequeno sorriso estampado, com olhos arregalados e atentos, de vez em quando ele até ousava dar risadinhas. Como alguém podia ter tanta vida no final da semana? Era tão injusto.

Uma semana se passara, e novamente era quinta feira, e assim como todas as outras quintas feiras daqueles tempos eu tinha em mãos o fim do dia, o cansaço, o trânsito e o calor. Firmemente eu mantia minha cara-não-sente-aqui quando então, chegando no quarto ponto da rota, novamente ele aparece. Não era possível, da última vez tive de saltar alguns quarteirões antes e caminhar pra casa. Não dava pra tocar o caminho todo próximo daquele ser reluzente. Minha estratégia tinha se voltado contra mim, afastando as pessoas acabei por deixar o lugar disponível para meu inimigo. Não tinha mais nada a se fazer, abaixei a cabeça decepcionado e praguejei em voz baixa enquanto ele se sentava ao meu lado. O ônibus seguiu um pouco, e então, ele esbarra com seu cotovelo em meu braço, segurei a raiva e fingia olhar a vista, mendigos, carros, asfalto, mendigos, carros, asfalto. Então ele esbarra novamente, percebi então que ele não estava esbarrando e sim me cutucando, impaciente e nervoso eu olho para ele que retribui o olhar com um sorriso estranho. Não podia ser? Além de tudo ele ia me paquerar? Pior não podia ficar, sem reação alguma não consegui escapar nem uma palavra, foi então que ele me apontou com os olhos a garota que estava atravessando a roleta. Mas que bela mini-saia, pernas douradas e curvas perfeitas. Quando olhei de volta para ele, estava sorrindo e balançando a cabeça positivamente, automaticamente escurreguei um sorriso amarelo de volta e me voltei para a janela. Mendigos, carros, asfalto, mendigos, carros, asfalto, mas eu não estava mais atento a isso, agora eu tinha na cabeça a imagem daquele par de coxas. Eu me sentia melhor. Passado certo tempo da viagem, ele me cutuca novamente, dessa vez já olho direto para a roleta, essa era mediana, um pouco de álcool e ela até se ajeitava. Olhei para ele que fazia uma cara de dúvida, respondi apenas com expressão facial, um talvez, aparentemente ele teve a mesma resposta pois respondeu com um leve balanço de cabeça inclinado. Me voltei para a janela. Quando cheguei no meu destino, já tínhamos avaliado algo em torno de sete mulheres.

Na próxima quinta feira ele estava de volta, novamente ao meu lado, e novamente jogamos. Avaliávamos cada mulher que passava por aquela roleta, nos comunicávamos precisamente apenas com expressões faciais. Boa, médio, ruim, maravilhosa. Éramos discretos, e pra se comunicar a gente usava o que dava, olho, sobrancelha, ombro, mão, boca. O jogo era mudo. E assim se procedeu, na outra semana, e na outra, e na outra. Era bom, logo ao fim da semana, quando eu estava mais cansado, eu tinha a ajuda do meu novo amigo, nosso lance despistava a situação negativa de voltar pra casa no ônibus amarelo e incrementava a rotina. O tempo passava mais rápido, o calor parecia menor e até mesmo no centro do centro, onde ocorria a grande desova e antigamente eu respirava aliviado, eu nem notava mais. As semanas passavam e aprimorávamos nossa técnica, os métodos de avaliação eram mais variados, o jogo se tornou mais prazeroso. A viagem se tornou rápida.

E foi assim, numa quinta feira qualquer, esperando meu amigo, com seu lugar reservado e animo alto pro jogo, que o onibus passou pelo quarto ponto e nada. Uma outra pessoa qualquer sentou em seu lugar. Fiquei chateado, mas pensei que pudesse ser um imprevisto qualquer, talvez ele estivesse doente, talvez ele não tenha tido aula, talvez isso, talvez aquilo. Mas independente de tudo, na outra semana, nada do meu amigo. No começo a esperança era grande, eu o imaginava entrando em outro ponto mais adiante, chegando na próxima semana, porém, eventualmente eu me cansei. Tentei jogar o jogo sozinho, mas não funcionava, era entediante e eu facilmente me dispersava. Em momentos de desespero cheguei a tentar com pessoas alheias que surgiam ao meu lado, mas não adiantava, elas nunca entendiam e sempre me olhavam torto no final das contas. Aos poucos me desprendi da ideia e voltei para o ritmo do tédio, cansaço, calor e sentir o tempo parar. Por muito tempo senti a falta do meu grande amigo do ônibus amarelo, minha amizade mais sincera e verdadeira. Sem nunca ter trocado uma palavra, nos entendíamos perfeitamente, funcionávamos em uma sincronia perfeita, nos divertindo da nossa maneira, sem buscar nos aprofundar em diálogos, desabafos e apoio. Apenas sentar ali e jogar o jogo era suficiente, apenas desfrutar a companhia um do outro. Cheguei a pensar se ele pensava em mim, fiquei com um pouco de rancor, mais isso é besteira, meu sentimento é só meu. Meu grande amigo do ônibus amarelo. E nem seu nome eu sabia.

5 comentários:

  1. Pra variar mega em cima da hora e esse é grande ainda por cima, não deu pra editar nem corrigir direito! Juro que na próxima vou tentar ser correto em minhas tarefas!

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  2. Tá valendo, foi muito divertido esse.

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  3. Tá valendo o atraso que eu disse...

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  4. Tá valendo o amorzinho, um gargarejo, carinhosinho. Vale tudo!

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