domingo, 26 de setembro de 2010

Tema: Amarelo

- Cerveja, é claro! – pediu.
Os dois desataram uma conversa riquíssima sobre valores, saudades e futebol. Era muito cedo.
- Caro amigo, eu creio mesmo que por tão pouco nos vermos, nossa conversa é como carta que, de tão atrasada, chega envelhecida com aquela cor do tempo. A sensação, obviamente, é angustiante...
- Meu querido quase-irmão... Sinto saudades. Peguei recentemente aquele ônibus que pegávamos juntos para ir ao Horto, naquele bar que o Moreira descobriu e disse ser o melhor da cidade... lembra? Pois eu me lembro e me emociono quando, nas finais do Mineiro, posso colocar aquela camisa que usei naquela final do Brasileirão...
-... ando pegando muitos ônibus diferentes, vendo muita gente sem graça; tenho falado muito por falar, levado muito na cara. A preguiça se apoderou de mim. Tenho vivido muito no sofá, tenho vivido muito mais de boa tarde do que de bom dia e, definitivamente já não sei o que é boa noite. Apartamento é terrível, meu irmão. É uma fôrma dessas em que a gente põe água e espera virar gelo. Não fosse o calor que me deixa meio febril, meio hepático, talvez eu tivesse mesmo virado gelo...
-... tentei procurar companhia, busquei aqueles velhos problemas. Acho que não te contei, mas revi Carolina recentemente. Foi estranho que após tanto tempo ela me procurasse. Ela ainda continua loira, farta, voluptuosa e senti meu estômago se revirando naquelas duas horas em que fiquei esperando ela chegar ao bar. Conversamos por algumas horas, driblando as interrupções vindas do resto da mesa e ela se mostrou interessada em mim, encantada como nunca antes, proferindo elogios e (maldição) enaltecendo minha inteligência. Sabes como eu sou fraco no ego, não? Dei pra esbanjar. Ela elogiou minha sensibilidade. Incrementei o assunto com perguntas. E eis que ela vem me contar de um trabalho final de sua faculdade. Em suas explanações, a filha da mãe me solta um “no meu trabalho, eu vou seguir três vertigens”... Eu duvidei. Continuei o assunto, ela queria dizer "vertentes", tenho certeza... mas repetiu o erro. "Olha, que legal, é bom trabalhar essa vertigem também", ela disse quando eu dei um pitaco que condensava e explicitava essa minha sensibilidade e intelectualidade. Fiquei olhando para aquela boca, pensando com dentes cerrados... "vertigens"... "vertigens"... tentei imagina-la me chupando, calada, ou simplesmente sorrindo. Fiquei triste - já não gosto mais das bocas só por imaginá-las me chupando. É horrível quando você cria esse tipo de exigência: bocas com conteúdo o suficiente para que não exista esse ímpeto de preenchê-las com sabe-se-bem-o-que...
-... consegui muita coisa na vida, cara. Salário, apartamento, namorada, ex-namorada, garrafa de whisky, livro de auto-ajuda. Tudo o que um homem feito precisa. Sempre existem coisas a serem lembradas e você está aí para não me deixar mentir. Tenho muitas lembranças em sépia em processo de desbotamento. Falo muito com as mesmas pessoas, mas parece que falo sempre as mesmas coisas, de uma maneira tão cíclica e viciada, tão rasa...
-... eu já desconfiei mesmo, como costumávamos desconfiar em nossas tardes ociosas de casa vazia, que tudo isso é mesmo enganação ou criação minha. Os códigos que usamos para pedir o leite, para comprar o pão são tão desestimulantes. Eu sinto falta de mudar a ordem das coisas, de pichar o muro, de beijar um homem...
-... sinto falta de me especializar em trivialidades. Tentei ser enólogo, mas é profissional demais. Resolvi provar cachaça – quanto mais amarela, mais velha, mais curtida, mais amarga, melhor. Irônico, não?
-... no entanto, estou bem. Duas vezes por semana vem uma faxineira. Ela é crente...
-... meu maior inimigo é o tédio...
-... o trânsito anda caótico por aqui. Não consigo chegar em casa antes das seis...
-... a vida já bateu, mas hoje não bate mais tão forte assim...
-... meu calo me fez perder a sensibilidade no pé...
-... no coração...
-... portanto...
-... não me estendo mais...
-... o tempo urge...
-... o tempo passou, né?...
-... tomara que nos encontremos...
-... Com carinho...
-... atenciosamente...
-Garçom, a conta – já era tarde, não havia luz suficiente para as cartas. Era melhor ir embora cuidar da febre.

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