sexta-feira, 11 de junho de 2010

Tema: Mulher

Experimentação pessoal sobre o medo de ser mulher.

Eram dois – um a segurava por trás, agarrando os seus braços e o outro fazia sua lambança. Os movimentos eram bruscos, um dos braços, segurado com muita força, já estava dormente e as surras doíam menos do que suas seqüelas posteriores.
Seqüelas que doeram em momentos muito específicos – como no beijo do pai que ardeu, e muito, a face de veias arrebentadas na semana seguinte àquele dia.
As surras não foram o pior. Doeram muito, mas muito, as coisas ditas ao ouvido. A saliva que ficava e escorria quando a boca desencostava da orelha, quase carregava em si as próprias palavras proferidas, os adjetivos sujos, perversos, traumatizantes.
O único trauma que ela havia carregado até então, fora o medo da rua na qual, aos oito anos, viu um menino sendo atropelado... Ela tinha medo das ruas, das grandes avenidas movimentadas, que ofereciam o perigo da pressa. Mas isso se supera, se supera pela necessidade do ônibus do dia-dia, se supera, indo pelas ruelas de bairros mais ermos. E esses bairros mais ermos, aonde os carros são poucos, a experiência veio contar, oito anos depois da cena do atropelamento, que são muito perigosos.
No vazio de uma área residencial, sem grandes avenidas e de casas fechadas e surdas à rua, oito anos depois de chorar pelo menino estirado no chão, ela chorava pela dor de puxões de cabelos e ordens violentas dentro de um carro fedido, que não a atropelara, mas a impelira pra dentro de si aos pontapés, palavrões e ameaças.
Um jeito com o qual ela só se acostumara em filmes. O sangue é mais sólido fora da tela e a própria dor é menos teatral – não se aceita a dor como um ator coadjuvante que leva um tiro e não reage. Até o ultimo instante, o que se pensa é na fuga e na preservação - nem que seja a preservação de um último pedaço da própria carne.
Até o momento em que, por sorte ou azar, acontece de o pesadelo acabar – como aconteceu de alguém passar de carro pela rua ao lado e acontecer de esse alguém ser um policial em uma viatura fiscalizando e procurando saber se havia ali algum casal se divertindo em local inapropriado. E aí, aconteceu de eles ouvirem a sirene e preferirem levá-la e, para evitar qualquer problema, a matariam e a jogariam em qualquer lugar. Mas também aconteceu de a pressa e o medo desviarem a atenção do motorista que ignorou a sinalização e bateu em um outro carro. E o carro ficou imobilizado. E começou uma violenta discussão. E um táxi passou. E no desespero, ela o parou e entrou. E, desorientados, eles não fizeram nada. E eles, afinal, não tinham armas, ela pensou, e eram menos ameaçadores do que ela permitiu. E chorou. E o motorista do táxi não pôde evitar perguntar o que acontecera, e entender o porquê da batida, o que ela tinha a ver com aquilo, e muito sem graça questionou se ela estava machucada e comentou o fato de suas roupas estarem rasgadas e ofereceu leva-la a um hospital. E ela, “casa, por favor”. Mas ele não. E ela gritava, esperneava de medo de aparecer assim em público. Ela fora estuprada, moço. “Estuprada! Eu não quero ir a lugar nenhum, eu quero minha casa, minha morte, meus pais, a polícia, deus ou quem quer que possa me esconder. Mas hospital não”.
No hospital, ela contaria coisas para pessoas que não poderiam saber. E que teriam dó e só dó... nenhuma arma pra acabar com quem fizera isso, nenhum remédio pra voltar no tempo e faze-la passar por outra rua; passar por uma avenida, quem sabe, e ser atropelada mesmo, pra, aí sim, ir pra o hospital com dignidade.
E depois sairia do hospital com dignidade. E viveria a vida com a dignidade de quem pode até rir dos próprios acidentes. A dignidade de poder passar pelas ruas escuras correndo um inocente risco de quem tem medo do desconhecido. Mas ela já conhecera o perigo e o perigo a usou e a tomou pra si, punindo-a. Punindo-a por andar por onde quisesse, punindo-a por usar roupas curtas demais, punindo-a por ter nascido mulher e ter tido a audácia de achar que isso não tem conseqüências.
E ora, porque ela fora punida e essas meninas não?, pensou, já aos 23 anos, quando fora pela primeira vez a uma festa de faculdade. Pois era constante o pensamento de sair distribuindo calças para as meninas por aí e dizendo: - cubram-se, não dêem chance, sejam cuidadosas, suas prepotentes... E é claro que é impossível permanecer em uma festa aonde garotas desfilavam suas pernas para homens de todas as idades e tipos que as olhavam somente como uma oportunidade. Ainda mais impossível foi suportar ouvir o comentário na fila do banheiro “meu deus, eu preciso comer alguém hoje”. E o olhar de quem dizia isso estava desfocado, como o de algum bêbado que responde muito mais com instintos perversos do que qualquer outra coisa. E esse olhar lhe trouxe um arrepio muito forte, como de alguém que, da esquina, tem a chance de ver a iminência do acidente. Ou como alguém que vê um filme terrivelmente previsível – o mesmo olhar estava estampado na cara do motorista de um carro que a abordou para perguntar como se chegava à rua tal, sete anos atrás. Esse olhar de quem lê somente o que lhe interessa... ai, eu quero ir embora. E ligou para sua mãe buscá-la na festa.
O pai, aliás, ficou muitos anos sem receber uma ligação dela. É dele que ela sentiu mais vergonha... do primeiro homem que ela amou, e que confiava em sua inocência e que por tanto confiar, fez a pergunta reveladora. Ele, ao ver a filha chegando com a blusa rasgada, os seios à mostra sangrando, o rosto variando em tons de vermelho; vociferou com o taxista querendo saber o que houvera com ela. E depois, chorando um choro que lembrava mais a raiva do que a compaixão, abraçou a filha perguntando “por que”.
Por quê? Foi essa pergunta que a fez perceber que era culpa dela. E que ela dera motivos para aquilo acontecer. E que inocência não tem nada a ver com burrice e que por causa desta, aquela agora se perdera de vez.
E a culpa é algo que todo mundo carrega, mas só os que têm o azar de levá-la em cargas maiores que se incomodam. Pois essa culpa pesou nas costas feridas com o canivete que cortou todo o seu corpo das costas aos seios, para puro divertimento dos rapazes que a usaram. A culpa foi como que a percepção de que aquele corpo não era de direito dela, pois afinal, ela permitira que outros o usassem. E, logo aos dezesseis anos, ela, que namorava há uns meses, percebeu que não queria ser usada mais, pois não era proprietária de si mesma.
E o corpo, que já não era dela, era um peso, era a própria culpa que nos primeiros meses, ardia onde o canivete passara, aonde a mão esmurrara, na vagina que fora inteiramente ferida por unhas, dedos e uma penetração extremamente desajeitada. E, meu deus, eles se apropriaram tanto da intimidade da moça, que chegou ao ponto de abstração, no qual só o corpo respondia e, ali, naquele carro ela chegara a tremer por uns segundos pela sensibilidade ainda aguçada de um pênis dentro dela. Ela sentiu dois ou pouco mais segundos de prazer e isso era inconcebível. E lembrar disso, dois anos depois, fez com que ela sentisse, novamente, vontade de se matar.
E a primeira vez em que essa vontade surgiu, foi na visita de seu namorado atônito, que chorava o tempo todo de raiva, dó, impotência. E a abraçara. E foi nojento abraça-lo. Nojento sentir novamente contornos masculinos de um corpo jovem. Fora a dor do próprio corpo cujas feridas a lembravam, o tempo todo, que ela não era mais dela e, sim da merecida punição culposa.
Foi necessário um tratamento psicológico, sim. Terapia e tudo mais que só serviu pra fazê-la esquecer, no dia-dia, o acontecimento. E ela, ignorando tudo, terminou com o namorado (que ela não sabe, mas se matou) e não teve mais nenhum, entrou pra uma faculdade, pra um curso qualquer, arrumou estágio, emprego aos trinta anos, e pôde sofrer com outras coisas, como a morte do pai, a viagem do irmão, o casamento da irmã mais velha... E o esquecimento é o estado sem o qual não existiria a lembrança. E ela lembrou e muito na vida. Como ferida que deixa pra doer quando o sangue esfria. Uma contusão na memória, na moral, na sensibilidade que vem de vez em quando, e isso é que dói - ainda se surpreender com a dor mais marcante de sua vida.
Foi algo que a impediu de querer ter filhas, de fazer filhos. Algo que mudou seu sonho pra coisas menos cheio de perspectivas e seus desejos se resumiriam ao jantar da noite. Pois as noites eram reservadas a janta e a liberdade dos sapatos e calças – inibidores de sua vaidade e protetores de sua integridade.
E amor é aquilo que se sente na infância, pelos pais e pela vida. Depois isso se perde e vira saudades só. O resto é interesse, lascívia.
A partir daqui, ela esquece o que aconteceu. Ela só sofre por ter sido amputada, por ter sofrido a penetração de sua intimidade e já esquecida de detalhes, evita encarar o quadro. Joga fora sua vontade, come vergonha três vezes ao dia, evita o espelho, a nudez do banho, os segredos da noite e nunca, em hipótese alguma, sente-se capaz de se doar a qualquer coisa. Nem a si mesma. Nem às maquiagens. E pouquíssimas são as festas que a atraem. Ou melhor, ela mal escuta a força de sua atração. Ou melhor, ela não tem forças. Ou não tem audição.
E por um dia ter doído, ela optou por se proteger no quarto pra impedir que a vida ardesse, se procriasse e se recriasse.

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