segunda-feira, 21 de junho de 2010

Tema: Toalha

Santo Sudário

E numa tarde de tanto calor, aquele sobe-ladeira danado e um sofrimento nesse sol de rachar que dá no fim de março... Maldito outono que não chega...
E as romeiras todas ali, subindo rua de pedra, como que respondendo ao sino; e o vestido ia encurtando nas mangas, as bochechas se avermelhando e aquele suor que, com sorte, os olhares de doze anos podiam flagrar escorrendo nas coxas à mostra de uma ou outra balzaquiana que puxasse a saia ao parar pra descansar do calor.
Mariana se incomodava menos com o sol do que maioria dos rostos corados ali na procissão. Ela se demorava mais em seu caminhar, estava distraída com alguma coisa desde que acordara. Alguma coisa estranha ali dentro. Diferente, não era cólica, até porque o sangue descera já fazia uma semana ou menos. Mas ai, não era o calor do sol que a fazia querer puxar as mangas, levantar um pouco a barra do vestido... não era, ai meu deus, não era...
Era domingo de páscoa e ao longe, naquele mar de montes, uma carga de nuvens pretas ameaçava acabar com a tirania daquela tarde. Lá embaixo do morro, de onde a procissão saiu, vinha a família dos pretos. Tão ameaçadores quanto as nuvens de lá do leste – diziam que eram do candomblé e disfarçavam seu paganismo participando das festividades da boa gente católica – falo dos pretos, não das nuvens.
E o desejo de que chovesse era grande. Jesus mesmo, ali com uma cruz de madeira barata, leve, já não se agüentava mais e praguejava em silencio, quase rezando pra que São Pedro tomasse lugar nessa palhaçada toda.
Os crentes faziam questão de cortar a procissão, passar em horizontal – eram dois: mãe e filho; 40 e 16 anos. Ao cruzarem com Jesus, cumprimentou-o a mãe, em respeito ao pai do messias, dono da venda. Ao encontrarem os pretos, viraram a cara, por conta de uma briga que o rapaz de dezesseis anos teve com o mais velho da outra família na escola. Preto de merda, esse Afonso... crente filha da puta. E a puta, Maria Madalena, que já até fora crente, mas largara a idéia por braveza do falecido pai, olhou torto pro menino branco- Alexandre que ele chamava - meio que prevendo alguma coisa ali.
Mariana também viu, sem prever coisa nenhuma. A barriga doía uma ansiedadezinha e o calor deixava a mão mais fria. Aliás, eu disse que ela viu, mas, na verdade, ela olhou e olhou firme. Depois do preto, tudo que prendeu o olhar do Alexandre foi a menina. A menina insossa, magrinha de tudo, que devia era de estar passando mal, com aquela suadeira fria, aquela coceira irremediável em algum lugar intocável, também não desgrudava o olho do branquinho.
E já chegando a procissão na igreja, um pretume, como que num fronte de batalha, veio chamando a atenção para si e levantando algum receio da hora de voltar – falo das nuvens, não dos pretos. E nessa deixa, Mariana diz “mãe, to passando é mal. Dá a chave de casa, dá? tô cansada e não quero pegar chuva. Fica com a sombrinha aí ”. Calada a mãe entregou o molho e seguiu entrando junto com os fiéis na igreja que passavam a mão na cruz e faziam o pelo-sinal.
Maria Madalena, que agora chamava Débora de novo, olhou pra menina indo ali na direção de casa, enquanto ela própria tomava o rumo que lhe convinha - seguiu os pretos, que não entraram no templo. Gostava deles, os tratava bem e fora sempre muito bem comida em segredo por um dos rapazes.
Seguiu-os até onde iam, perto da casa de Mariana, que era vizinha do tal Alexandre. Era pra buscar um pano na casa d’uma velha.
Dez minutos antes de a velha entregar esse pano, Mariana chegava em casa. Vinte minutos antes de Mariana chegar em casa, uma discussão se iniciara nos vizinhos. “...que igual seu pai você não fica, seu excomungado. Pai que você tem é Deus, e só. E esses vícios vamos dar jeito de tratar. Ah, então é? Você vai sair daqui? É igual o pai mesmo...” Eram gritos que da rua se ouviria, se ali estivesse alguém. Pois que, logo depois de Abel sair batendo porta pra o meio da rua e a mãe ir chorar rezando no quarto trancado, veio Alexandre, mais menino que nunca, não acreditando em deus, chorar no passeio a raiva do irmão descrente.
Ali que Mariana o encontrou. E a fisgada fria aumentou na barriga, as coxas se roçaram e, com a intimidade de quem nunca sequer trocara uma palavra com o vizinho, ela assentou ao lado dele, passou a mão nos cabelos lisos do rapaz e disse: “por que é que tá chorando aqui, na porta da minha casa?”. Ele ficou em silêncio e, chorando mais forte, deitou no colo dela. Ela o abraçou, beijou seu cocuruto, levantou-o pelo braço, puxou-o como quem puxa um bêbado, abriu a porta de sua casa, tomou consciência de que aquelas fisgadas já se tornavam mais prazerosas, voltou-se pro rapaz e o abraçou com a força de uma mãe que abraça o filho retornando da guerra. Sentiu, portanto, as lágrimas quentes escorrendo pela sua clavícula, a boca do rapaz encostando em seu peito e molhando o vestido, os cabelos lisos e loiros que roçavam em seu pescoço e decote; e ela passava as mãos naquela seda, consolando-o e empurrando-o mais pra baixo e ele já ousava abraçá-la pela cintura, e escorria a mão com desajeito pela barriga, mexendo excessivamente o tecido do vestido em várias tentativas que, enfim, deram certo, porque ela já não agüentava mais aquela demora e decidira guiar a mão do rapaz. Ele a apertava desajeitadamente, com uma força desnecessária. Caíram no sofá, graças às contorções de Mariana. E ela parou.
Foi ao banheiro e começou a querer chorar a confissão do domingo que vem. Ele a seguiu, já sem a roupa, catando-a por trás. O choro cessou. Ela ficou nua e isso era muito melhor naquele calor. Ela apanhou a toalha, por supôr que faria sujeira. Foram pro quarto e, em cinco minutos, o sangue desceu e ele, gozado e arrependido, já não agüentava mais nada.
Chorando irracionalmente, o garoto pôs roupa, passou na cozinha e saiu correndo atrás do irmão - queria matar aquele profano infeliz, contagioso.
Os pretos o viram sair da casa da garota e não puderam perdoar. “Olha quem andou provando a fruta...” – Eles voltavam com um jogo de toalha bordada da casa da velha; Maria Madalena ia com eles e não riu da piada, pra não atirar a primeira pedra. Afonso, o preto que brigara com o menino na escola, riu mais alto – não tão alto quanto o grito de dor da faca que o atravessou logo depois. AU, FILHO DUMA PUTA. E foi outra facada, dessa vez, no pescoço. FALA AGORA, CRIOULO.
Ah, mas o menino apanhou, apanhou de desmaiar, de ninguém acudir. Apanhou o que queria ter batido no irmão. Mas apanhou, viu.
E Afonso morto, acolhido por Maria Madalena, que lhe devia uns carinhos, acolhido pela toalha da velha, suja de um sangue diferente daquele que sujava a toalha de Mariana num quarto na mesma rua.
Toalhas inúteis. Inúteis pra secar as lágrimas daquela que se sentia indigna; e o suor do pessoal morro acima, na igreja fedendo a fim de tarde; inútil até pra acolher aquela sangria desatada e, ao mesmo tempo, o choro de luto, e ao mesmo tempo o choro da mãe no quarto, indignada pelo filho que puxara o pai e pelo filho, que ela ainda nem sabia, mas morreu ali na rua mesmo, depois de matar um preto.
Toalhas inúteis pra secar as lágrimas daquele domingo de páscoa, mas que absorviam o material viscoso que traz pra gente esse incômodo chamado vida.
E a chuva que ameaçava a procissão caiu.

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