terça-feira, 24 de agosto de 2010

Tema: Massinha

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13 de outubro

A vida é mesmo uma filha ingrata e mimada.
Um travesti me disse certa vez que a vida é uma doença sexualmente transmissível, crônica e mortal. Não o acho sábio, nem sequer engraçado ou original por essa frase. Mas essas palavras vivem se divertindo na minha cabeça, como uma piada sem graça que ficamos tentados a contar quando nos deparamos com pessoas sem graça. É incrível a quantidade de pessoas sem graça no mundo. Droga, essa piada me persegue.

Nesse meu ofício sujo, poucas vezes existe o luxo de certos sentimentos. Mas, dessa vez...
Pobre homem. Apesar do costume com cadáveres, vez ou outra, sinto alguma empatia por um. É o caso, estou comovido.
Ele morreu sorrindo. Tentou fazer um acordo, mas foi enganado. Pobre homem. Não se faz acordos assim em dias como os atuais. Não com esse bando de loucos à solta. Ele sorriu aliviado antes de ter sua barrigada completamente perfurada. Quanta confiança...

Como não podia deixar de ser, a noite é quente e eu me sinto um pouco exposto nessa camisa de mangas. Acho que são essas moscas. Malditas, a carne mal esfriou e elas já estão em cima.
Tenho de levar o corpo agora - a Agência exige. Mas tenho pena. Sei de sua história, investiguei tudo. Bom homem. Bom marido. O melhor empregado da editora. Bem relacionado. Muitos amigos. Estava sempre sorrindo. Passava confiança. Tinha postura, ajudava os amigos, a mãe e a esposa. Jamais incomodava a ninguém.

Esse é o problema das pessoas boas. Elas, normalmente, não ocupam espaço. Tornam-se moleiras, pedaços manipuláveis e de solidez pouco confiável. Cabem no molde da perfeição. Cabem em qualquer molde.

E se deformam.
Pobre homem. O mais doloroso é que todos morrem – mas, no caso das pessoas boas, parece injustiça. Não, a morte é a coisa mais justa do mundo – é o único ponto que iguala todos os homens.
-Pra morrer, basta estar vivo.
Eu só acelerei o processo. E matei um homem bom, igualando-o a todos esses vermes que enterrei durante esses anos.
Sinto enjôo. Deve ser fome. Esse cadáver vale o mês. Essa é minha vida – uma filha ingrata e mimada.
A piada não me sai da cabeça.

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