sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Tema: Ginástica Rítmica

Fita Amarela

Gi
-nástica -tmica Despor-ti-va. Ela dizia de boca cheia. É dança e é arte sabe? O som alto de sua voz invadia a sala com aquele seu sotaque paulista irritante. Os anos se passavam, o jeito de falar não. Tão pouco deixava de incomodar. Ela nem ao menos nasceu lá, morou por três anos e olhe lá, porque não fala normal que nem a gente daqui? Pensava de vez em quando. Naquelas vezes em que ele estava mais cansado, e ela parecia falar mais alto, e mais paulista. Nossa! Como eu era boa. Eu era tão bonita, tão harmoniosa. Se eu não tivesse quebrado a perna eu tinha até ido pra Atlanta em noventa e seis. Aquele noventa e seis, falado daquele jeito, dava uma dor de cabeça. Ainda esboçava uma cara de interessado, mesmo depois dos sete anos passados. Sete anos, sempre a mesma história. Depois de um longo dia de trabalho não era fácil. Balançava a cabeça, abria um sorriso hora ou outra e tomava o seu café silenciosamente. Ele era quieto, ela gostava disso. Podia contar suas histórias, ele iria ouvir. Se ela pudesse ouvir o que a cabeça dele dizia. Mas a boca se recusava a falar, e as coisas seguiam assim. O trabalho também não ajudava muito, o emprego de vendedor ia ser provisório, era pra segurar as despesas até ele se acertar, fazer aquela pós e virar professor. E de repente se passaram sete anos.

Gi-nástica -tmica Despor-ti-va. É dança e é arte sabe? Nossa! Como eu era boa. Eu era tão bonita, tão harmoniosa. Se eu não tivesse quebrado a perna eu tinha até ido pra Atlanta em noventa e seis. Esse jeito de falar, esse jeito de falar. Ele pensava enquanto mordia o canto da boca. Ela nem era tão boa assim, nunca ganhou nada, o que eu sei é que ela era uma promessa, assim como centenas de outras garotas pelo país. Podia muito bem ter voltado a treinar quando se recuperou que eu sei, eu sei, já conversei com o pessoal da cidade dela. Não. É mesmo é uma preguiçosa, que gosta de ficar sentada nesse sofá o dia inteiro vendo novela. Harmonia, graça, beleza? Não tem nem mais rastros disso, esses anos no sofá vivendo o passado deixaram ela fora de forma, seu jeito de andar era engraçado e desajeitado, seus sonhos são amarelados e tristes, estão virados ao avesso, são apenas uma lembrança morna e mentirosa. E esse sotaque, esse sotaque. A cabeça dizia, a boca não.

Gi-nástica -tmica Despor-ti-va. É dança e é arte sabe? Nossa! Como eu era boa. Eu era tão bonita, tão harmoniosa. Se eu não tivesse quebrado a perna eu tinha até ido pra Atlanta em noventa e seis. Mal tinha fechado a porta, o ponteiro apontava seis horas da tarde, tinha trabalhado o dia inteiro. Lidando com todos os tipos de pessoas, com aquele sorriso falso na cara, aquela simpatia fajunta. Olhou pra sala e viu aquela mulher, a televisão ligada como sempre, a mesa e o café frio esperando por seu silêncio e sua cara de interesse postiça. De repente ele para. Sua cabeça parou de pensar, se cansou de tanto dizer e a boca recusar a falar, e do corpo que nada faz. Sente na boca o gosto do café, o mesmo de todos os dias, sem calor, sem açúcar e sem afeto. Vê a mulher, que vê a tevê, que mostra pra ele que é tudo igual, a mesma trama, o mesmo horário. São seis horas e o tic tac do relógio diz, são seis horas e você não fez nada hoje, são seis horas e tem tempos que você não faz nada, nada que faça você esquecer das horas e de que lembre você que está vivo. Diz. Em tic tac mas diz.

Gi-nástica -tmica Despor-ti-va. É dança e é arte sabe? Nossa! Como eu era boa. Eu era tão bonita, tão harmoniosa. Se eu não tivesse quebrado a perna eu tinha até ido pra Atlanta em noventa e seis. Diz o homem com um sotaque paulista exagerado e nada natural. A mulher amarrada na cadeira da mesa de jantar sua frio, está assustada e surpreendida. O homem vestido com a sua velha roupa de ginástica, ilustra todo o absurdo da situação. Repetindo essas mesmas palavras com o falso sotaque e a voz de forma afeminada, ele corre pela casa rapidamente, agita as fitas da maneira mais harmoniosa que consegue. Primeiro ele quebra a televisão, depois o relógio, segue quebrando coisa atrás de coisa, repetindo as mesmas palavras, sua boca nunca falou tanto, seu sangue corre quente, a cabeça pensa: to vivo relógio filho da puta!

Gi-nástica -tmica Despor-ti-va. É dança e é arte sabe? Nossa! Como eu era boa. Eu era tão bonita, tão harmoniosa. Se eu não tivesse quebrado a perna eu tinha até ido pra Atlanta em noventa e seis. Essas palavras nunca mais foram ditas ou ouvidas naquele lar. Aliás tudo que era dito já não carregava mais sotaque algum, se não o da região. As seis horas eram indicadas apenas pela chegada do homem pois relógio algum ou televisão jamais habitaram aquele lar novamente. A mulher que tinha por ele agora respeito, ou medo (há quem diga que é tudo a mesma coisa) o recebia todos os dias com a casa limpa e um farto jantar posto a mesa. As nove da noite, o homem desfrutava sexualmente de seu corpo e ao terminar virava para o lado e dormia.

Um comentário: