domingo, 7 de novembro de 2010

Tema: Giz

Para Mendonça, Bonfá e Neto



A vida tal qual é... já não é mais. Não estou me queixando, aparento-me triste, mas é só a idade, acredite. Venha até aqui... dê uma olhada. Ficávamos ali, esperando mamãe Dinorá, sem se importar com o tempo da demora; não, não era costume a raiva florescer por tal razão. Lembro-me que levava no bolso uma ponta de giz branco para, em bons momentos, escrever em Francisco. Ahh! A Francisco Nunes; largas calçadas, lisas, uma planície de concreto, bons tempos de bolas de gude. Eram estouros frequentes, e com frequência também as perdia nesses recém bueiros instalados nos pés de Francisco.

Quando íamos à praia, logo do bonde via-se a temperatura da água. A maneira como as mocinhas, perdidas nas dunas de Copacabana, se portavam, dizia se o certo a fazer era aproveitar a mesma viagem para ir de volta pra casa, ou descer do bonde e ir de encontro ao desfrute. Copacabana era um solo fértil, criávamos muito. Ipanema ainda não tinha ganhado destaque, era terra de mulato.

Quando comecei a frequentar os bares dos alemães a beira-mar, conheci Lígia. Lígia era linda, era como o Jazz, um balanço descompassado. Vinha, bonita, naqueles uniformes da escola normal. A noite, trajando a moda dos vestidos de paetês, sentava-se sempre à mesa da frente para me provocar. E eu me encantava. Ela foi uma das primeiras que me chamou atenção. Mais tarde tive a infelicidade, por vezes, de vê-la chegar bêbada. Enquanto eu ficava em casa, compondo, Lígia ia, se perdia na noite. Houve uma época em que eu a amava muito, me permiti o sofrimento, mas não por muito tempo. Depois de um ano juntos, Lígia foi embora, e junto dela a boemia alemã.

Sentado nos novos bares, tupiniquins por excelência, lia muito a respeito de Mário e seus colegas de São Paulo, pretensiosos em inventar o Brasil. O mesmo Brasil que por aqui era inventado. Ipanema tinha uma nova importância. Ali eu e o poeta, mergulhados em conversas e whisky, via-mos a vida e as boas mulheres passando. Ela vinha, desde o final do Leblon, no antigo posto 12, rebolando, fazíamos pequenos comprimentos para ela, e tudo ficava bom. A moça não sabia o grau de influência que o seu balanço tinha na nossa música. Era novamente o Jazz, o brazilian Jazz. Temos muito a agradecer aquela garota. Ganhamos o mundo por sua causa.

Depois vieram os encontros no Au Bon Gourmet, e as noites cariocas nunca mais foram as mesmas. Já tínhamos muitas boas canções, sambas de primeira. O diplomata vinha de terno e gravata, o Itamaraty não gostava da idéia de vê-lo sempre enfornado nos bares da noite. Mas não poderia deixar de aparecer, ele era peça importante na roda. Era um letrista e tanto. Um poeta popular, e um boêmio genuíno. Foram bons encontros aqueles.

Ahh, mas era um tempo feliz, como sinto saudades. Agora, a minha janela não passa de um quadrado, só vejo Sergio Dourado, onde antes eu via o redentor. Não fui forte à pressão do saudosismo, e no janeiro de 1982 me atirei da varanda do meu apartamento. Foi um suicídio fracassado, passei quatro meses e onze dias em coma, mas sobrevivi com séria fratura no crânio que deixaria sequelas.

Hoje estou vivendo em Juiz de Fora, e o que me resta, além de um cantinho e um violão, é o velho piano, várias telas e as caixinhas de giz branco. Como, ultimamente, ando meio desligado, uma farsa de Rita cuida de mim e coloca a mesa do café, almoço e jantar todos os dias. Vivo como as crianças da rua Francisco Nunes.

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